24.1.12

O que valem os treinadores? (e o caso de Domingos no Sporting)

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A utilidade do treinador para o adepto...
Provavelmente, não haverá figura mais interessante de analisar do que a do treinador, particularmente no papel que representa para os adeptos. Diria que é uma figura especialmente útil para a relação que os adeptos mantêm com o jogo, ajudando-os a conseguir extrair alguma recompensa emocional de um fenómeno a que se entregam apaixonadamente mas que tantas vezes não os recompensa de forma correspondente. O adepto "clubista", que precisa de acreditar no potencial infinito das suas cores, tem no treinador a oportunidade de manter essa crença: afinal, pode ser sempre apenas por culpa daquele personagem que melhor patamar não foi atingido pelo seu clube. O adepto "especialista", por seu lado, pode manter a sua crença na sua própria sabedoria: julgar as decisões do treinador depois do jogo, oferece-nos sempre a possibilidade de pensar que se fossemos nós a decidir, teríamos feito diferente, e forçosamente melhor.

Esta descrição, tal e qual está feita, pode parecer pouco abonatória para todos nós, mas entendo-a como sendo tão normal como útil para a própria dinâmica do fenómeno. Afinal, os adeptos precisam de se sentir bem consigo próprios e com as suas crenças, e o futebol precisa, mais do que tudo, dos seus adeptos. No meio de tudo isto, não creio que os treinadores (pelo menos os dos principais escalões) fiquem a perder, porque todo este frenesim em seu redor dá-lhes importância e isso reflecte-se também nas recompensas, materiais e não só, que acabam por receber...


Que efeito podemos, realmente, esperar de um treinador?
Na sombra de todo este misticismo que existe em torno da figura do treinador, sobra a pergunta: Afinal, qual a real importância da figura para o sucesso das equipas? Não é uma questão propriamente fácil de responder, e eu próprio tenho vindo a alterar a minha visão à medida que vou constatando certas situações e reflectindo continuadamente sobre ela. Aqui fica um pouco do que hoje é a minha visão...

A questão sobre o treinador e a sua importância é levantada no livro "Soccernomics" (que li na sequência da discussão de há alguns dias), embora centrada no contexto britânico, onde a problemática é bem mais suave do que nos países latinos. O que o argumento desse livro advoga e que eu tenho de corroborar, é que a influência do treinador, podendo ser decisiva, está longe o ser, como regra.

Podemos precisar? Felizmente, creio que sim. Há cerca de 1 ano analisei o desempenho dos diferentes treinadores na liga portuguesa ao longo de 10 anos, comparando os pontos conseguidos em relação à expectativa pontual que realisticamente existia em cada jogo. Entre os treinadores com mais de 100 jogos, apenas 4 tiveram um aproveitamento superior a +10% do que a expectativa global. Sendo este um nível que já se pode considerar muito acima da média, +10% pode fazer a diferença numa determinada zona da tabela, mas não é, seguramente, suficiente para que se considere expectável que um treinador possa fazer milagres por si só. A isto há que acrescentar ainda a possibilidade do efeito inverso, ou seja, o efeito que um clube pode ter na potenciação do desempenho de um treinador. O caso do Porto, por exemplo, é elucidativo, porque se tem sido decisivo para o clube saber escolher os respectivos treinadores, também terá seguramente sido favorável para os próprios as condições que encontraram no clube. Os exemplos de Robson, Mourinho, Fernando Santos ou Jesualdo Ferreira são claros a este nível, porque todos eles trabalharam noutros "grandes", mas só no Porto tiveram sucesso. Ou seja, podemos estimar +10% como expectativa de um desempenho acima da média de um treinador (na verdade, bastante acima da média, se considerarmos que em 10 anos apenas 4 treinadores o conseguiram ao fim de 100 jogos), mas não podemos nunca dissociar o papel das condições do próprio clube para que este patamar seja atingido.

O que pode diferenciar os treinadores?
Talvez o ponto mais marcante da conclusão anterior seja a escassez de treinadores que efectivamente conseguem superar as expectativas de forma continuada. São raros em Portugal, mas não tenho evidência de que o sejam menos noutros locais, tendo em conta análises semelhantes que já fiz sobre outros países. A pergunta seguinte, é: o que pode diferenciar os treinadores?

A primeira conclusão que me parece simples de retirar, é que ao contrário do que denunciam quase sempre os debates entre adeptos, a diferença não se faz pela concepção de jogo ou pelas metodologias utilizadas. Ou seja, pode fazer-se, mas é improvável que essa vantagem possa perdurar muito no tempo. O raciocínio é simples: num tempo onde a informação circula a grande velocidade e em que podemos ver continuadamente qualquer equipa em qualquer parte do mundo, se aparecer um treinador com imenso sucesso pelo simples facto de ter introduzido ideias melhores do que as dos seus pares, facilmente essas ideias serão identificadas, copiadas e, logo, anulada a diferenciação. O mesmo se aplica, embora com maior dificuldade de réplica, às metodologias já que métodos inovadores tendem a ser abordados e debatidos no meio, sendo, no limite, um segredo identificável por aqueles que em determinado momento trabalharam com um treinador de sucesso, e que depois passam a liderar eles próprios equipas técnicas, podendo reproduzir as mesmas metodologias e, logo, reduzindo ou anulando a diferenciação.

Três casos que considero ser paradigmáticos de como este tipo de factores não podem ser diferenciadores durante muito tempo num contexto tão competitivo como o futebol actual:
(1) Mourinho. Foi estudado intensivamente no universo do futebol português, primeiro, e mundial, depois. Falou-se de métodos de treino, de ideias e estratégias de jogo, de perfil de comunicação, etc etc. No entanto, e apesar de tudo isto, o sucesso do treinador continua com o tempo e nunca foi reproduzido por ninguém. Porquê? Provavelmente, porque o sucesso do treinador tem a ver com a natureza do próprio e esse será o factor verdadeiramente diferenciador, por não ser replicável.
(2) Barcelona. As ideias de jogo do Barça, o "tiki-taka", são adorados em todo mundo. Todos os adeptos admiram e estudam a forma como jogam, mas nenhum foi capaz de a reproduzir em parte nenhuma do mundo. Porquê? Provavelmente, porque o sucesso do seu modelo de jogo tem uma contextualização especifica e foi potenciada por uma formação de excelência e orientada para essa mesma ideia de jogo. Ou seja, o Barça, no seu estilo e qualidade, não será irreplicável, mas para consegui-lo provavelmente é preciso bem mais do que a simples implementação de uma ideia de jogo. Por isso, o Barça permanece uma equipa fortíssima e diferenciada de todas as outras, apesar de todos desejarem jogar da mesma forma.
(3) Oakland Athletics. Volto ao caso do filme/livro "Moneyball", onde uma abordagem de avaliação de jogadores distinta do convencional marcou a diferença num contexto de enorme exigência e competitividade. O ponto sobre os Oakland A's difere dos dois anteriores, porque o sucesso desta equipa apenas pôde perdurar enquanto as restantes equipas não adoptaram, elas próprias, a mesma metodologia. Ou seja, o método apenas foi diferenciador temporariamente.

Ou seja, "porque é que alguns treinadores se diferenciam positivamente dos outros?" é uma pergunta tão difícil de responder como o "porque é que Mourinho tem um sucesso tão continuado e os outros não?". Constata-se, mas não se saberá materializar exactamente a razão...

Estes factores que, por serem transmissíveis, podem não ser "positivamente diferenciadores" num meio de informação quase perfeita como é o futebol de mais alto nível, mas serão seguramente "negativamente diferenciadores", sendo esse o motivo pelo qual alguns treinadores se vêem ultrapassados após vários anos de sucesso. Recorrendo de novo a um exemplo positivo, temos o caso de Alex Ferguson, que conseguiu manter-se no topo do futebol graças a uma constante adaptação a métodos e ideias conforme foram surgindo no jogo. Assim, mantendo-se actualizado, aquilo que o diferenciou positivamente nos anos 80 continuou a fazê-lo 20 anos mais tarde. A este nível, já agora, parece-me importante o papel da equipa técnica como um todo, devendo esta ser heterogénea na sua composição e possivelmente pouco estática ao longo dos anos, para permitir diferentes visões e abordagens aos mais variados aspectos. Por exemplo, parece-me favorável que um treinador que seja ex-jogador seja suportado por uma equipa com uma componente de formação mais académica, e vice versa...

Finalizando, a minha conclusão é que, os factores que classifiquei de "não positivamente diferenciadores" são necessários mas não suficientes para um sucesso diferenciador no tempo, sendo que a característica complementar que garante a diferenciação de um treinador será provavelmente a sua capacidade de liderança, que tem muito a ver com a natureza do próprio e não é replicável de pessoa para pessoa.

Domingos e o Sporting
Não fosse o futebol tão emocional e o treinador um personagem com a receptividade que descrevi inicialmente, e penso que o volume das recentes criticas ao treinador não faria sequer sentido discutir, assim como a inclusão deste capítulo no texto. Não que pense que Domingos não tenha cometido erros, ou que não discorde de algumas das suas opções. Aliás, discordei bem cedo na temporada. O que me parece descabido é a relação de causalidade entre essas discordâncias e as dificuldades que sente nesta altura o Sporting.

Domingos faz parte dos 4 treinadores que abordei anteriormente e o seu trajecto até ao Sporting não é apenas bom, mas excepcional, encontrando pouco paralelo aonde quer que seja, e não precisando sequer da final da Liga Europa para chegar a esta conclusão. 6 meses difíceis não seriam em qualquer circunstância suficientes para colocar 5 anos de sucesso em causa mas, logicamente, só haveria uma conclusão possível a retirar quando a junção de um treinador de sucesso a um clube com dificuldades não resulta: é que as dificuldades do clube são muitas e não que o treinador, afinal, não presta. Mais uma vez, só a irracionalidade tão própria do futebol pode sugerir que a lógica contrária surja como primeira hipótese para o problema.

De todo o modo, e apesar da irracionalidade "per se" do raciocínio anterior, o mais interessante é ir à especificidade do caso. Em particular, há dois pontos que são, para mim, avassaladores na relativização das responsabilidades de Domingos no momento actual da equipa. O primeiro é a composição heterogénia da sua equipa técnica: muito mais provável do que os problemas diagnosticados (a meu ver, muitas vezes correctamente) pelos adeptos não serem percepcionados por quem está dentro, é que os pormenores dos problemas não sejam percepcionados por quem está de fora.
O segundo ponto é mais relevante, e tem a ver com as condições que o próprio teve nestes primeiros meses. A equipa sentiu dificuldades iniciais, mas assim que conseguiu estabilizar apresentou um rendimento bastante elevado e praticamente nivelado com o dos rivais. A regressão que aconteceu nos últimos dois meses tem uma explicação fundamental, que para mim é óbvia, e que está relacionada com as lesões a que o plantel tem vindo a ser sujeito, em jogadores que inicialmente se pensavam ser nucleares. Uma equipa, mesmo que individualmente medíocre, pode ser colectivamente potenciada se tiver fiabilidade, mas se não a tiver, o seu total será inevitavelmente muito próximo da soma das suas partes (se as partes estão sempre a mudar, que hipóteses há para a evolução do todo?!)...
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